Carta de Putin para a África

Em meio a notícias de que o Presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, não irá pessoalmente à Cúpula do BRICS 2023, que ocorrerá em Joanesburgo, África do Sul, entre 22 e 24 de agosto de 2023, e às vésperas da Cúpula Rússia-África e o Fórum Econômico e Humanitário Rússia-África, que ocorrerá em São Petersburgo, Rússia, nos dias 27 e 28 de julho de 2023, o Kremlin divulgou uma carta de Putin à África, a qual traduzimos abaixo, sem fazer juízo de valor em relação à veracidade do conteúdo.

É importante notar, no decorrer da carta, a posição russa em relação a diversos assuntos diplomáticos, como a visão russa sobre as relações internacionais, e o tom altamente respeitoso com que trata de questões africanas e de outras regiões do globo, como a América Latina.

Esta visão, mais o respeito visto na carta, ajudam a explicar o porquê de muitos países fora do eixo Europa Ocidental / EUA e seus aliados mais tradicionais (Coreia do Sul, Japão, Austrália, etc) adotarem uma posição neutra, ou até mesmo pró-Rússia, em relação à Guerra Russo-Ucraniana que está em andamento agora.

Artigo de Vladimir Putin: “Rússia e África: Unindo Esforços para a Paz, Progresso e um Futuro de Sucesso”

De 27 a 28 de julho, São Petersburgo sediará a segunda Cúpula Rússia-África e o Fórum Econômico e Humanitário Rússia-África. Na véspera desses eventos representativos de grande escala, que reunirão chefes de Estado e de governo, empresários, acadêmicos e figuras públicas, gostaria de compartilhar minha visão sobre o desenvolvimento das relações Rússia-África com os leitores dos principais meios de comunicação do continente africano, delineando áreas prioritárias de cooperação para as próximas décadas do século 21.

As relações de parceria entre o nosso país e África têm raízes fortes e profundas, e sempre se distinguiram pela estabilidade, confiança e boa vontade. Temos consistentemente apoiado os povos africanos em sua luta pela libertação da opressão colonial. Prestamos assistência no desenvolvimento dos Estados, fortalecendo suas soberania e capacidade de defesa. Muito tem sido feito para criar bases sustentáveis ​​para as economias nacionais. Em meados da década de 1980, com a participação de nossos especialistas, mais de 330 grandes infraestruturas e instalações industriais foram construídas na África, como usinas elétricas, sistemas de irrigação, empresas industriais e agrícolas, que operam com sucesso até hoje e continuam a dar uma contribuição significativa para o desenvolvimento econômico do continente. Dezenas de milhares de médicos, especialistas técnicos, engenheiros, oficiais e professores africanos estudaram na Rússia.

Gostaria de mencionar especificamente a cooperação tradicionalmente estreita no cenário mundial, a defesa firme e consistente prestada pela URSS, e depois pela Rússia, aos países africanos em fóruns internacionais. Sempre aderimos estritamente ao princípio “Soluções africanas para os problemas africanos”, sendo solidários com os africanos em sua luta pela autodeterminação, justiça e seus direitos legítimos. Nunca tentamos impor aos parceiros nossas próprias ideias sobre estrutura interna, formas e métodos de gestão, objetivos de desenvolvimento e formas de alcançá-los. Inalterado permanece nosso respeito pela soberania dos estados africanos, suas tradições e valores, seu desejo de determinar independentemente seu próprio destino e construir livremente relacionamentos com parceiros.

Valorizamos muito o capital ganho honestamente de amizade e cooperação, tradições de confiança e apoio mútuo que a Rússia e os países africanos compartilham. Somos reunidos por um desejo comum de moldar um sistema de relações baseado na prioridade do direito internacional, no respeito pelos interesses nacionais, na indivisibilidade da segurança e no reconhecimento do papel central de coordenação das Nações Unidas.

Hoje, a parceria construtiva, confiável e voltada para o futuro entre a Rússia e a África é especialmente significativa e importante. Surgem no mundo grandes centros de poder e influência econômica e política, que se impõem cada vez com mais insistência, exigindo que sejam levados em consideração. Temos certeza de que uma nova ordem mundial multipolar, cujos contornos já se vislumbram, será mais justa e democrática. E não há dúvida de que a África, juntamente com a Ásia, o Oriente Médio e a América Latina, ocupará nela o seu lugar digno e finalmente se libertará do legado amargo do colonialismo e do neocolonialismo, rejeitando suas práticas modernas.

A Rússia saúda a crescente autoridade internacional de Estados individuais, bem como da África como um todo, seu desejo de fazer suas vozes serem ouvidas e de tomar os problemas do continente em suas próprias mãos. Sempre apoiamos as iniciativas construtivas de nossos parceiros. Defendemos a concessão aos países africanos de seu lugar de direito nas estruturas que determinam o destino do mundo, incluindo o Conselho de Segurança da ONU e o G20, bem como a reforma das instituições financeiras e comerciais globais de uma forma que atenda aos seus interesses.

Lamentavelmente, vemos que a situação no mundo hoje está longe de ser estável. Os conflitos de longa data que existem em quase todas as regiões estão se aprofundando e novas ameaças e desafios estão surgindo. E a África sente o fardo dos desafios globais como nenhuma outra parte do mundo. Em um ambiente tão desafiador, esperamos trabalhar com nossos parceiros africanos para moldar uma agenda de cooperação não discriminatória. As áreas estratégicas de nossa interação são definidas pelas decisões da primeira Cúpula Rússia-África realizada em Sochi no final de outubro de 2019. O Fórum de Parceria Rússia-África foi estabelecido para sua implementação efetiva. Constituímos comissões intergovernamentais bilaterais de cooperação comercial, econômica, científica e tecnológica com vários países do continente, e a rede de embaixadas e missões comerciais russas na África será expandida. Outros instrumentos estão sendo desenvolvidos ativamente para melhor estruturar as relações econômicas e torná-las mais dinâmicas.

Gostaria de observar com satisfação que o volume de negócios da Rússia com os países africanos aumentou em 2022 e atingiu quase 18 bilhões de dólares americanos. No entanto, todos sabemos que o potencial da nossa parceria comercial e econômica é muito maior. As empresas russas estão interessadas em atuar mais ativamente no continente na esfera de alta tecnologia e exploração geológica, no complexo de combustíveis e energia, incluindo energia nuclear, na indústria química, mineração e engenharia de transportes, agricultura e pesca. As mudanças que ocorrem no mundo exigem a busca de soluções relacionadas ao estabelecimento de novas cadeias de transporte e logística, à formação de um sistema monetário e financeiro e a mecanismos de liquidação mútua seguros e livres de impactos externos desfavoráveis.

Entendemos a importância do abastecimento ininterrupto de alimentos para o desenvolvimento socioeconômico e a estabilidade política dos estados africanos. Com base nisso, sempre demos muita atenção às questões relacionadas ao fornecimento de trigo, cevada, milho e outras culturas aos países africanos. Temos feito isso tanto por contrato quanto gratuitamente como ajuda humanitária, inclusive por meio do Programa Alimentar das Nações Unidas. Assim, em 2022, a Rússia exportou 11,5 milhões de toneladas de grãos para a África, e quase 10 milhões de toneladas foram entregues no primeiro semestre de 2023 – apesar das sanções impostas às nossas exportações, que dificultam severamente o fornecimento de produtos alimentícios russos aos países em desenvolvimento, complicando a logística de transporte, acordos de seguros e pagamentos bancários.

Muitos provavelmente já ouviram falar do chamado “Acordo de grãos” [N.T.: Putin está falando sobre a Iniciativa de Grãos do Mar Negro], cujo objetivo inicial era garantir a segurança alimentar global, reduzir a ameaça da fome e ajudar os países mais pobres da África, Ásia e América Latina – razão pela qual a Rússia assumiu a obrigação de facilitar sua implementação em primeiro lugar. Este “acordo”, no entanto, embora tenha sido anunciado publicamente pelo Ocidente como um gesto de boa vontade que beneficiou a África, na verdade foi descaradamente usado apenas para o enriquecimento de grandes empresas americanas e europeias que exportavam e revendiam grãos da Ucrânia.

Julguem por si mesmom: em quase um ano, um total de 32,8 milhões de toneladas de suprimentos foram exportados da Ucrânia sob o “acordo”, com mais de 70% das exportações terminando em países de renda alta e média-alta, inclusive na União Europeia, enquanto países como Etiópia, Sudão e Somália, bem como Iêmen e Afeganistão, receberam menos de 3% dos suprimentos, ou seja, menos de um milhão de toneladas.

Nesse ínterim, nenhuma das cláusulas do “acordo” relacionadas à isenção de sanções das exportações russas de grãos e fertilizantes para os mercados mundiais foi cumprida. Além disso, barreiras foram levantadas até mesmo para nossas tentativas de fornecer fertilizantes minerais gratuitos para os países mais pobres necessitados. Das 262.000 toneladas de mercadorias bloqueadas nos portos europeus, apenas dois carregamentos foram entregues – um de 20.000 toneladas para o Malawi e outro de 34.000 toneladas para o Quênia. O resto ainda é mantido sem escrúpulos pelos europeus. E estamos falando de uma iniciativa puramente humanitária, que deveria ser isenta de qualquer sanção como tal.

Considerando todos esses fatos, não há mais utilidade em continuar o “negócio de grãos”, pois ele falhou em cumprir seu propósito humanitário original. Argumentamos contra a extensão do “acordo”, que terminou em 18 de julho.

Quero dar garantias de que nosso país é capaz de substituir o grão ucraniano tanto de forma comercial quanto gratuita, especialmente porque esperamos outra safra recorde este ano.

Apesar das sanções, a Rússia continuará seus esforços enérgicos para fornecer grãos, produtos alimentícios, fertilizantes e outros bens para a África. Valorizamos muito e desenvolveremos ainda mais todo o espectro de laços econômicos com a África – com Estados individuais, bem como associações de integração regional e, naturalmente, com a União Africana. Congratulamo-nos com o curso estratégico desta organização para uma maior integração econômica e a formação da Zona de Comércio Livre Continental Africana. Estamos prontos para construir relações pragmáticas e mutuamente benéficas, inclusive no âmbito da União Econômica da Eurásia. Também estamos dispostos a intensificar a cooperação com outras organizações de integração regional no continente.

Mantendo a tradição existente, pretendemos continuar a prestar assistência aos Estados africanos na construção da sua capacidade nacional de recursos humanos. Existem atualmente cerca de 35 mil estudantes do continente na Rússia; mais de 6 mil deles recebem bolsas do governo russo. A cada ano aumentamos o número de bolsas, promovemos opções remuneradas de ensino superior e facilitamos os vínculos interuniversitários, que ganharam grande impulso nos últimos tempos.

Levar a cooperação humanitária, cultural, esportiva e de mídia a um nível totalmente novo serviria aos nossos interesses comuns. Gostaria de aproveitar esta oportunidade para convidar nossos jovens amigos africanos para o Festival Mundial da Juventude, que acontecerá em Sochi, na Rússia, em março de 2024. Este fórum internacional de grande escala reunirá mais de 20 mil participantes de mais de 180 países para um diálogo informal, amigável e aberto, livre de barreiras ideológicas e políticas, preconceitos raciais e religiosos, e consolidará a geração jovem em torno dos ideais de uma paz permanente e duradoura, prosperidade e espírito criativo.

Concluindo, gostaria de reiterar que atribuímos grande importância à Segunda Cúpula Rússia-África. Esperamos que a Cúpula adote uma Declaração abrangente, uma série de declarações conjuntas e aprove o Plano de Ação do Fórum de Parceria Rússia-África até 2026. Estamos trabalhando para preparar um pacote impressionante de acordos intergovernamentais e interagências e memorandos com Estados individuais, bem como associações regionais do continente.

Estou ansioso para dar as boas-vindas aos líderes africanos em São Petersburgo e estou comprometido com um diálogo construtivo frutífero. Acredito firmemente que as decisões adotadas na Cúpula e no Fórum, juntamente com um trabalho conjunto diversificado e contínuo, contribuirão para um maior desenvolvimento da parceria estratégica russo-africana em benefício dos nossos países e povos.