
No final da década de 1950, a URSS procurava uma aeronave supersônica de longo alcance para cobrir os mais de 5 mil km da região Norte, de onde se esperava que os EUA atacariam com os então novos B-52. Nenhuma das aeronaves da época teria o desempenho necessário para atender às especificações, então o bureau Tupolev adaptou o Aircraft 98 (‘Tu-98 Backfin’), projeto de bombardeiro recém cancelado, para a missão. O Tu-128 tinha uma velocidade máxima de aproximadamente Mach 1,6 e alcance superior a 2.500 km, e permaneceu em serviço até a queda da URSS [1].
O Tu-128 reunia o que de mais avançado a URSS tinha na época, de tal forma que, assim como outros projetos de ponta (como o Su-15 Flagon), ele ficou restrito à Rússia, não sendo exportado nem mesmo a países da URSS como a Ucrânia [2].
É com base nesta última parte da informação – algumas aeronaves soviéticas eram restritas à Rússia, e o Tu-128 é uma delas – que causou estranheza um artigo recente que alega, sem apontar as fontes, que os Tu-128 quase foram enviados para a Guerra das Falklands / Malvinas de 1982. Não vamos postar o link do artigo para não colaborar com disseminação de ‘fake news’.
ALEGAÇÕES
O artigo aponta que a URSS, desejosa de ajudar a Argentina, enviou armas leves (como os mísseis SA-7 Grail) e imagens de satélites, como já divulgado por outras fontes [3] [4], mas alguns dentro do Partido Comunista, alegadamente, queriam fazer mais.
Uma das supostas ideias foi a de enviar caças como os MiG-21 e MiG-23 (que já eram comumente exportadas), mas também MiG-25 (de exportação bastante restrita, mas ainda assim disponível a alguns clientes soviéticos) e também o Tu-128.
E é aí que encontramos problemas – não apenas com o Tu-128 em si, mas com a ideia de exportar aeronaves, que são itens altamente complexos.
Que a URSS exportou armas leves para dezenas de países ao redor do mundo não é surpresa pra ninguém. As armas leves soviéticas são robustas e de operação simples, e mesmo soldados com pouca instrução podem operar tais armas com eficiência razoável.
Aeronaves, entretanto, são outra história, ainda mais em 1982.
O primeiro ponto é que aeronaves são itens de operação extremamente complexa, com a formação de pilotos custando vários meses e vultosas somas de dinheiro. Ademais, são itens cuja manutenção é bastante custosa, com a formação de mecânicos e o restante do pessoal de apoio levando também vários meses e a um custo elevado.
O segundo ponto é que países diferentes usam equipamentos e filosofias de operações diferentes, então é incomum um usuário de aeronaves americanas mudar para aeronaves russas, por exemplo. Tal mudança implicaria em inutilizar uma infinidade de sistemas auxiliares (ferramentas, simuladores, bancadas de testes, etc) de custo bastante elevado.
E ainda que tal mudança seja feita, é um processo que pode levar anos. Um exemplo claro disso são os países que eram do Pacto de Varsóvia mas que, após a queda da URSS na década de 1990, migraram para a OTAN – praticamente todos estes países ainda usam pelo menos algumas aeronaves soviéticas, décadas depois, e vão usá-las até o final da vida útil, quando terão que ser retiradas de qualquer maneira.
Essas observações genéricas já indicam que a adoção de aeronaves soviéticas pela Argentina, ainda mais com uma guerra em pleno vapor, seria praticamente impossível, e o autor do artigo citado menciona que a URSS enviaria aeronaves e pilotos, e chega a apontar alguns óbices.
A URSS não queria ser vista como parte ativa do conflito, evitando assim que os EUA enviassem suas próprias forças, numa escalada bastante grave da situação. Enviar armas leves a conflitos é algo relativamente simples, pois aeronaves civis podem e tem sido usadas para tal missão. Mas enviar aeronaves é uma operação muito mais complexa e difícil de esconder.
Enviar aeronaves diretamente da URSS envolveria várias escalas, e acobertar uma operação tão complexa seria quase impossível. A outra possibilidade, inclusive aventada pelo autor do artigo supracitado, seria o envio por via marítima.
E aqui encontramos outro problema sério – o bloqueio naval imposto pela Inglaterra.
Os navios não poderiam vir pela África do Sul (um dos países que, secretamente, apoiava a Argentina), pois a Inglaterra invariavelmente interceptaria um comboio. Patrulhas marítimas e submarinas inglesas também seguiriam atentamente qualquer navio partindo da URSS ou países aliados (Cuba, por exemplo). E o Chile (inimigo argentino de longa data e que secretamente apoiava a Inglaterra) acompanharia qualquer comboio vindo pelo Pacífico.
Outro ponto seria a operação das aeronaves. Quem pilotaria, e quem manteria as aeronaves voando? Sugestão do autor: pessoal soviético.
O grande problema pra isso é que os pilotos soviéticos, depois dos reveses na Guerra dos Seis Dias de 1967 e Guerra do Yom Kippur de 1973, pararam de apoiar pilotos estrangeiros, a menos que a URSS fosse um beligerante direto (como é o caso na Guerra Civil da Síria). [5]
Por fim, mas não menos importante, é o fato de que a URSS nunca operou os Tu-128 fora da Rússia, nem mesmo no auge da aliança soviética com os árabes na Guerra dos Seis Dias e do Yom Kippur. É altamente improvável que uma aeronave tão avançada fosse enviada para uma ‘operação indireta’, especialmente porque, ao contrário de aeronaves como o MiG-23, seria impossível à URSS alegar que tais aeronaves foram enviadas à Argentina por terceiros.
Estes fatos se encontram, de uma forma ou de outra, num relatório da CIA de 1983, que foi tornado público recentemente. [6]
CONCLUSÃO
Como se pode observar, até mesmo uma análise superficial dos fatos aponta como sendo, no mínimo, altamente improvável a alegação que os Tu-128 seriam enviados à Argentina durante a Guerra das Falklands.
Se não bastasse tal análise, o documento da CIA afasta quaisquer dúvidas – nem Argentina nem URSS consideraram seriamente a possibilidade do envio de aeronaves soviéticas à Argentina, especialmente não do Tu-128, que sequer foi citado nominalmente no relatório da CIA, por ser uma proposição tão absurda que sequer foi analisada, ao contrário de MiG-21 e MiG-23, por exemplo.
Com isso, e a menos que se apresentem fontes com credibilidade comparável ao documento da CIA [6] contido nas Referências mais adiante, podemos classificar a notícia como mais uma ‘fake news’.
REFERÊNCIAS
[1] http://www.airvectors.net/avtu128.html
[2] https://weaponsandwarfare.com/2019/03/25/tu-128-fiddler-bases-and-tasks-of-the-tu-128-regiments/amp/
[5] https://www.iaf.org.il/4423-45314-en/IAF.aspx
[6] https://www.cia.gov/library/readingroom/docs/DOC_0000261286.pdf
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